24 de nov. de 2015

Por favor, diferente - Tati Bernardi



Eu não espero que você seja o-grande-amor-da-minha-vida, parei de acreditar nisso na quinta série quando a moça que trabalhava na biblioteca do meu colégio me disse que estava se separando do marido dela. Meus pais estão juntos até hoje, mas a gente sabe bem como vão as coisas ali. A moça da biblioteca chorou. 

Não quero que você me faça chorar. Não quero que você seja um motivo ruim na minha vida. Você é motivo de sorrisos, razão pra eu acordar num dia de chuva e tomar banho e mudar de roupa porque eu sei que você vai passar aqui, vai trazer algo congelado pra gente ver ser aquecido no forno e comer enquanto falamos bobagens. Não quero te odiar. Não quero falar mal de você pros outros. Pras minhas amigas. Quero falar mal de você como quem ama.


Pois é, Carla, ele nunca lembra de desligar o celular antes de dormir e sempre alguém do trabalho liga. Sabe, eu quero dizer isso. Que o máximo de irritação que você me provoca é me acordar de manhã cedo falando bobagens que parecem ser importantes no celular. Não quero que você me largue. Não quero te largar. Não quero ter motivos pra ir embora, pra te deixar falando sozinho, pra bater o telefone na sua cara. E eu não tenho medo que isso aconteça (eu nunca tenho), eu fiz isso com todos os outros. É só que dessa vez eu queria muito que fosse diferente.

Dessa vez, com você, eu queria que desse certo. Que eu não te largasse no altar. Que eu não te visse com outra. Que eu não tivesse raiva. Que você não passasse a comer de boca aberta. Que você entendesse o meu problema com chãos de banheiro molhados pra sempre. Que você gostasse e cuidasse de mim como disse ontem à noite que cuidará.

Eu quero que dê certo, não estraga, por favor. Não estraga não estraga não estraga. Posso pôr um post-it na sua carteira? Mesmo que a gente não fique juntos pra sempre. Mesmo que acabe semana que vem. Nunca destrua o meu carinho por você. Nunca esfrie o calorzinho que aparece dentro de mim quando você liga, sorri ou aparece no olho mágico da minha por minha porta. Mesmo que você apareça na porta de outras mulheres depois de me deixar. Me deixe um dia, se quiser. Mas me deixe te amando. É só o que eu peço.

24 de set. de 2015

O amor que vai e não volta



A gente já se despediu inúmeras vezes. E todas às vezes me reinventei porque não queria que você mais me conhecesse, todas às vezes, eu me reinvento só para poder dizer que não há mais nada seu aqui comigo. Mas ainda assim, continuo sendo a mesma de sempre. Continuo repassando suas frases aleatoriamente dentro da minha cabeça. Continuo carregando sua personalidade dentro do meu peito, continuo carregando suas frases tortas e teu jeito tão prepotente comigo.

Nunca vou entender porque a gente sempre continua indo e voltando. Nunca vou entender porque seu olhar é o único lugar que realmente me sinto segura, ou porque simplesmente eu gosto do som da tua risada. Você sempre vai quando a gente se torna de verdade. Você sempre vai antes mesmo de descobrir que amo a cor verde, que sou apaixonada por botânica, e que sou meio melancólica. Você nem ao menos sabe que banco a escritora, e que queria ter feito jornalismo por muito tempo. Você sempre vai antes de saber que sou aventureira mas morro de medo de altura, e que às vezes, eu choro ao invés de rezar. Você sempre vai embora antes mesmo de eu dizer que acredito no amor, e que quero me casar. Você sempre vai embora antes mesmo de mim.

A gente nunca chegou a comer realmente o brigadeiro de paçoca que queria. Por mais inúmeros convites de homens aleatórios para sair, tudo que eu mais queria era o brigadeiro de paçoca. Não há bar tumultuado de faculdade, não há bar que vende pastel, não há bar algum que chega a substituir a minha vontade de fazer algo leve como você. Você que sempre aguentou minhas loucuras de um jeito tão sútil, ou até mesmo de um jeito tão engraçado que fazia com que as minhas loucuras se encaixassem nas tuas.

A gente se beijou pela primeira vez há um ano atras, e eu nem ao menos me senti culpada.Você com a cara mais cínica e mais linda dizendo "O que é que tem?". O que é que tem? O que que tem é que eu gosto de você tão cegamente, e tão surdamente. O que é que tem é que você se afasta e eu me contorço de saudade reprimida. Torço para que não vá tão longe, torço para que não seja de outra, torço para que não fique tão as minhas sombras. Não suportava te achar o homem mais incrível, e o homem mais bonito que eu havia conhecido. Não suportava sentir que o meu mundo fosse desabar todas às vezes que me olhava. Não suportava nem ao menos te ter por perto.

Esse texto por mais que seja sobre o não amar alguém, significa que há tantas mais formas de gostar de alguém que te salva e te perde. Que te busca, e te encontra diversas vezes e de formas diferentes. Você nem ao menos sabe que odeio te odiar pelo simples fato que tudo me cansa muito. Viver de joguinho sentimental me cansa e não desejo nada disso para ninguém.Viver de joguinho só me faz querer te odiar mais, e eu odeio muito te odiar.

Peço desculpas ao meu ódio tão intenso para poder gostar de você. Peço licença para a minha personalidade tão mandona, para poder brincar de ser sua de vez em quando. Só quero que o dia acabe e que eu não te odeie e que você não termine indo embora pela milésima oitava vez no ano. Só quero saber que lá na frente, você ainda continua sendo meu e eu continuo sendo sua. Só quero terminar o dia para te dizer mais uma vez: Eu ainda estou aqui.




7 de jul. de 2015

Para o bom e velho Caju





Nem ao menos me recordo quando foi a primeira vez que ouvi sua música, lembro apenas que me encantei perdidamente com uma voz rouca meio embriagada e que possuía tão cheia de vida. E eu, aos meus treze anos, me sentia do mesmo jeito: embriagada pela vida e com uma sede enorme de fazer a tal revolução no mundo. Coitada de mim, eu só queria ouvir minhas músicas, e ter meus amores platônicos em paz, e você estava lá, Cazuza, me acompanhou em todos os momentos que passei.

Sua voz estava comigo quando terminei meu primeiro namoro aos quinze anos. Chorei horrores e soluçava na mesma frequência em que você dizia "Eu protegi teu nome por amor, um codinome beija-flor...". Sua voz estava comigo quando iniciei uma paixãozinha platônica qualquer e logo em seguida fiquei viciadíssima na música Poema, em que você compôs e eu tenho a versão do Ney Matogrosso no meu velho computador.

Há 25 anos você se foi, e levou junto sua sede de mudar o mundo, a sua rebeldia eloquente, e aquela velha intensidade de ser exagerado por toda vida. Nós que somos exagerados e intensos temos isso, não é? Queremos passar pela vida das pessoas deixando marcas profundas. Eu, por ter o ascendente em aries, me sinto uma ariana fora do meu ninho virginiano. Eu, me sinto tão parecida em tantos aspectos. Principalmente quando você dizia que os filhos únicos são seres infelizes. Sim, Cazuza, filhos únicos são incrivelmente infelizes. Somos egoístas e desajustados, mas há uma poesia, melodia e uma melancolia que chega até ser bonita dentro de nós. E nós somos assim, intensos, doloridos, exagerados, e querendo matar aquela sede na base de uma saliva qualquer.

Sabe Caju, eu também morri de amor milhões de vezes, e pode até ser exageradamente mas é verdade. Sempre morri de amores, e provavelmente continuarei morrendo por aí, pelos caminhos que ando, e pelas frases que teimo em escrever, assim, meio torto. Não quero ser o pão ou a comida de alguém, e nem procurar algum remédio que me dê alguma alegria por aí. Só queria talvez assim, ser um pouquinho neutra. E olhe só, eu, a rainha do exagero, querendo ser neutra. É muita ironia para uma vida só, Caju.

Me recordo quando tinha meus dezesseis anos e ficava ditando para todo mundo que meu partido é um coração partido, e adorava imaginar o que você pensava quando dizia que os teus heróis haviam morrido de overdose. E infelizmente Cazuza, meus heróis morreram de overdose e de AIDS. Infelizmente Cazuza, você foi um desses que fez parte de tantas frases não ditas minhas. Não quis ter nunca alguém que fizesse sentido ouvir O tempo não pára. Nunca quis ter alguém que eu pudesse dizer que a piscina dele está cheia de ratos. Tuas músicas me ensinaram o que eu devo ou não achar em alguém. E eu sou grata por isso.

Eu também já amei alguém, e também sei que raspas e restos são chatos demais. Obrigada por ter me ensinado por não aceitar migalhas de amor por aí. Cazuza, continuarei protegendo meus amores com codinomes. Continuarei chorando baixinho quando ouvir sua versão da música de Cartola. Continuarei escrevendo loucamente pelos meus cadernos e twitter suas frases soltas. Continuarei buscando suas músicas como resposta, ou pelo menos, continuarei buscando suas músicas para que me consolem.

O seu Brasil, Cazuza, continua querendo mostrar a cara há anos. Continua pobre, continua a luta de burguesia em que você vivia dizendo que graças a ela, não havia poesia. O seu Brasil, Cazuza, continua pobre, e explorado. Não há mais cara alguma para mostrar. Cazuza, não há cara, nem dor. Há apenas poesia. Sua poesia ficou, e espero que você fique em paz.

Eu ainda vou me apaixonar milhões de vezes novamente e vou cantar baixinho Eu preciso dizer que te amo. Vou chorar baixinho, alto, soluçando ou não. Continuarei caçando frases soltas, textos soltos, tuas frases e tua poesia, mas é como você mesmo diz:



Essa vida é para se mostrar. Só quem se mostra se encontra. Por mais que perca no caminho. 




E Cazuza, se foi uma coisa que realmente aprendi com você é, não tenho o menor medo de viver.







27 de mai. de 2015

Perdoando Deus - Clarice Lispector



Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.

Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? 

A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. 

É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. 

E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo.

Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.

7 de mai. de 2015

O sultão sem coração - Tati Bernardi




Mal pisei na balada já correram pra me avisar: “Se prepare, ele está aí, e não está sozinho.”
Eu sabia, eu sabia. Estava saindo de casa com meu jeans fuleiro, meu tênis vermelho surrado e uma camiseta qualquer quando tive a brilhante idéia de me trocar inteira. Eu era agora uma moça com um pretinho básico curtérrimo, uma longa bota de bico fino e um belo decote que insinuava um sutiã pink. Um arraso. 


Ah, então ele estava lá e estava acompanhado? Sem problemas, quem já tá na merda não se incomoda com mais sujeiras. Eu não iria embora não, iria ficar e tentar rebolar ao máximo a bunda que eu não tenho.
Escolhi o ângulo perfeito, aquele em que ele não teria como não ver, e comecei a desfilar minha falsa alegria pela pista, eu ria e dançava como se fosse a pessoa mais alegre do planeta. 


Uma amiga me alertou: “Ele está com uma loira que é um arraso.” Eu nem liguei, arraso por arraso e loira por loira, até aí eu também sou. Com a diferença de que eu sempre fui uma loira-arraso que sabia conversar uma ou outra coisinha com ele e nunca fiz questão de presentes. Aquela devia ser uma burra interesseira.
Daqui a pouco outra amiga (tô começando a duvidar dessas amizades) veio com a novidade: “Você viu a morena que está com ele? Sensacional!” 


Uma morena? Mas não era uma loira? Que seja, dane-se, eu também era, no fundo, no fundo, uma morena. Ele estava cansado de saber (e conferir) isso. Uma morena não estragaria minha noite não, eu tinha um sutiã pink, uma cano alto de couro nos pés, um novo corte chiquérrimo de cabelo e uma nuca deliciosa à mostra. Tava tudo certo. 


Resolvi conferir, por via das dúvidas. Como será que era essa loira, ou essa morena. Era loira ou morena? Andei o bar inteiro atrás dele até que o vi sentado num sofá imperial com seus adidas velhos em cima de um puf imperial (a decoração da bosta do bar é imperial). Enquanto ele saboreava um mojito das mãos de uma linda loira, uma linda morena esfregava seus enormes peitos na cara dele e chupava uma folhinha de hortelã. O sofá ainda abarcava uma castanha, uma ruiva, uma japonesa, duas baixinhas assanhadas e uma grandona com cara de traveco. 


Ele não estava nem com uma loira, nem com uma morena. Ele estava em um harém. Ele era um sultão com mil mulheres. Era o dono do pedaço. Mandava e desmandava naquela merda. Se naquela merda de bar vendessem uvas em cachos, ele certamente estaria comendo uma das mãos de uma daquelas vadias.
Eu quase podia ouvir ele falar no ouvido deslumbrado daquelas putas: “Vai, querida, pega lá o que você quiser beber, hoje é por minha conta.” “Vamos, lindinha, vamos lá pra minha casa que tem oito andares, uma king size com mil almofadas de seda e um deck decorado de estrelas”. 


Ele fez que não viu, mas me viu olhando. Se ajeitou no sofá, jogou a porra do cabelo ensebado pra trás e deitou a cabeça no meio dos peitos da morena. A loira, enciumada mas querendo participar da brincadeira, jogou as pernas por cima dos dois. As outras dançavam e rebolavam em volta dele. Era praticamente uma orgia na minha frente. 


Cansei, era demais pra mim. Ainda que eu subisse em alguma mesa pelada e jogasse fanta uva nos peitos (eu não bebo), eu não ganharia dele. Ele tinha vencido, ele estava por cima, só me restava ir embora.
Depois de três horas sem entender por que raios a fila para pagar a bosta do bar não andava, resolvi ver o que estava acontecendo. 


E como desgraça pouca é bobagem, o que estava acontecendo é que demorava um pouco para somar a conta de 14 putas alcóolatras numa só comanda e dar para o sultão pagar com o cartão da empresa. Que cena, que vontade de vomitar. 


Tudo bem, tudo bem, respirei fundo. Quantas vezes eu não tinha desfilado com garotos mais jovens e mais fortes do que ele? Quantas vezes ele já não havia me ligado implorando um almocinho sem maiores danos e eu havia negado. Ele só estava me dando o troco. E que troco: a conta das vadias bêbadas tinha ultrapassado toda a grana que ele já havia gasto comigo em anos. 


Cheguei em casa arrasada. Arranquei aquela roupa ridícula que mostrava aquele sutiã ridículo e joguei aquelas botas ridículas o mais longe que eu pude. Coloquei, querendo morrer, meu pijama de ursinhos: enquanto isso ele comia duzentas mulheres que certamente usavam roupinhas mais sexy. 

A Lolita (minha cachorrinha) se encaixou em mim, querendo dormir de conchinha. Que fim triste para essa mulher de maquiagem borrada e coração dilacerado. Enquanto isso ele devia estar encoxando duzentas mulheres que também latiam (e com muita sorte minha também eram peludas). 


Mais uma vez a velha e boa sensação de que o mundo todo é lindo, o mundo todo é desejado, o mundo todo se diverte, o mundo todo vibra, trepa, goza, brinca, ama, festeja, acontece, se dá bem… e eu continuo feia, brega, renegada, com teias de aranha, sozinha e no escuro. 


Meu sofrimento não tinha fim, mas foi interrompido pela salsa eletrônica do meu novo celular rosa. Era ele do outro lado: “Conversa comigo? Tô sem sono…”

Eu sabia, eu sabia, nem todas as “sultãonetes” do mundo eram capazes de dar a ele o que eu dava. Ainda que meu coração fosse um só.

23 de mar. de 2015

Estúpida fidelidade - Tati Bernardi




Tomei um banho quente em outra casa e deixei outro homem me ver nua. Deixei outros tempos que não o nosso passarem e deixei outras esquinas que não as nossas serem quebradas.
A noite corre normal sem a gente, e parece até mais leve, parece um apaziguamento, um reinício de vida. A vida sem você é uma chuva absurda que remexeu sarjetas e valetas mas secou, trazendo de longe o divertimento quase uníssono de crianças num parque qualquer.
Tudo fica mais doce sem a ansiedade da felicidade, tudo parece um livro de desenhos para colorir, e eu sei lidar melhor com ele. Eu carrego as cores e ninguém manda no meu quadro.
A senhorinha do restaurante nasceu para servir minha mesa, e essa constatação não me fez sentir culpa por essa certeza frustrada que carrego de ser o centro do universo.
Ela me viu com o outro, e a partir desse momento, criamos uma intimidade que ela soube valorizar me dizendo que apesar de eu ser mais jovem, ele era muito charmoso.
Ninguém me jogou uma pedra, ninguém cuspiu em mim e as ruas até que fluíram amigas para que a gente andasse de mãos dadas e cantasse músicas bregas, desviando de lixos.
O ar e o silêncio me deram a preguiça necessária para eu deitar em outra cama e relaxar do meu amor enlouquecedor por você.
A tão sonhada paz, que não sinto ao seu lado, chegou. E eu dormi finalmente sem precisar saber onde você estava e no que você estava pensando.
Eu respirei apesar da minha rinite e eu não senti o vácuo assustador do meu espírito.
É mais fácil viver longe de você. É mais fácil acordar feia e isso ser só mais uma visão da vida. É mais fácil dormir sem querer alcançar a vida ao lado, porque é preciso morrer um pouco para dormir e eu odeio essa sensação de intensidade absurdamente viva que eu sinto cada vez que miro um pedaço seu, espalhado no seu mundo entreaberto.
Nenhum pensamento meu tem o poder de te machucar, nenhum mundo para onde eu vá tem o poder de te causar desespero. E eu preciso te sentir na minha ratoeira, eu preciso atirar nas suas asas que sobrevoam meu sossego. Você sempre me deixa, mesmo ficando colado comigo.
Eu preciso sentir tormento alheio para desocupar o lugar da atormentada. Eu preciso ter a certeza que no seu ponto perdido no espaço ainda não mora outro rosto.
O amor tem uma cara feia pra mim, de tormenta, de escuridão, de labirinto. E eu não consigo acreditar no seu jeito feliz de me amar, no seu jeito feliz de achar que tudo bem entregar um peito a outro ser que voltou ao mundo porque ainda não tinha aprendido a viver. Quando a gente ama, a gente entrega a alma para alguém que não sabe direito nem o que fazer com a própria.
Por isso eu agora estava ali, coberta do cheiro alheio, para ver se eu me defumava de outras intenções, o suficiente para fechar os poros das nossas portas.
Eu queria morrer ali, ao lado do outro homem. Ainda que nenhuma célula do meu corpo permitisse a proximidade de outro batimento cardíaco, outro bafo e outro estalar de dedos do pé.
Eu queria congelar aquele momento sem luz, aquele momento em que, aos poucos, eu sentia meu corpo e todo o resto feito de espírito voltar ao meu centro. A nossa morte que me retornava à minha vida.
Eu queria que a manhã chegasse aos poucos, matando você sem que eu acordasse e, finalmente, no café da manhã, eu tomaria um suco de laranjas com a minha existência livre da sua.
Eu queria não acordar e lembrar que ainda preciso conquistar você, porque você brinca de ser meu, mas mora do outro lado mundo.
E eu não sou atleta e nem forte para correr tanto e tão longe, por isso gostaria de destruir tudo o que é seu do meu mapa. Eu tenho muita preguiça do seu olhar de "já sei o que é sofrer, agora posso viver sem medo porque descobri que eu não morro".
Eu já sofri por aí, mas ainda morro muito, todo dia eu velo meus restos e conto uma piada para ninguém perceber. E eu queria relaxar da terra em cima da minha cabeça só para variar um pouco.
Eu estava deitada numa cama imensa que poderia ser minha, e o outro dizia "tudo aqui pode ser só seu e pra sempre". Aos poucos fui lavando meu cérebro de você, e torcendo para os restos da limpeza caírem no meu  coração, acabando de vez com o serviço.
Fui trabalhando meu corpo para esvaziar todas as suas pistas da minha história.
A maior felicidade para mim é sentir uma coceguinha de proteção no centro do meu estômago, uma borboletinha da alegria, uma paz imensa que emana do meu centro esquentando até os dedos do pé e os fios de cabelo.
Essa alegria foi nascendo, igual a quando eu sabia amar apenas como filha, porque ele me deixou ficar nua, carente e imaculada, como uma criança.
A escuridão foi me invadindo e calando neurônio por neurônio, grito por grito da minha angústia.
Eu já estava me acostumando com a vida assim, a vida quente e confortável do chão firme e certo. O quente do amor conquistado e sólido e não da paixão quebrada em milhões de pedaços indecifráveis que eram jogados por um desconhecido, como num jogo de dardos, no meu coração estampado numa parede descascada.
Mas eu sonhei que você me descobria, me via deitada ali com a pele tão arrepiada que parecia uma galinha depenada, e eu te dizia: eu não deixei ele encostar em mim, eu sou tão sua, que merda, eu sou tão sua.
E você, sem alterar a expressão eterna do seu orgulho inabalável, apenas me olhava com pena e me dizia que tudo bem. 

Mas não está tudo bem, sabe? Eu preciso ver sofrimento no meu líder para saber que sigo um apelo humano. Eu cansei de alisar sua escultura de pedra.
Eu cansei de ser perdoada, compreendida e aceita. Eu cansei do mundo evoluído, porque eu sou bicho e esse mundo evoluído me humilha demais.
Alguém aí pode admitir que essa merda de vida dá um medo filho da puta, e que ficar longe de tudo dói, e que ficar dentro de tudo dói, e que estar aqui, agora, dói pra cacete?
Alguém aí pode admitir por um segundo a inveja, o cansaço, o ciúme, a dor, a porra toda que essa química causa no nosso cérebro quando se espalha sem pedir permissão e joga essa doença toda pra cima da gente, a gente que estava calmamente vivendo nossa vidinha idiota?
Alguém aí pode deixar de segurar na muleta social do divertimento, jogar copos longe, cigarros longe, bocas alheias, fugazes e desconhecidas longe, roupas longe, colares e pulseiras longe, poses e armações de sutiãs longe,…?
Alguém pode me dar um murro na boca e me prender ao pé da cama, por favor?

13 de fev. de 2015

Triz - Tati Bernardi


Eu quase consegui abraçar alguém semana passada. Por um milésimo de segundo eu fechei os olhos e senti meu peito esvaziado de você. Foi realmente quase. Acho que estou andando pra frente. Ontem ri tanto no jantar, tanto que quase fui feliz de novo. Ouvi uma história muito engraçada sobre uma diretora de criação maluca que fez os funcionários irem trabalhar de pijama. Mas aí lembrei, no meio da minha gargalhada, como eu queria contar essa história para você. E fiquei triste de novo.
Hoje uma pessoa disse que está apaixonada por mim. Quem diria? Alguém gosta de mim. E o mais louco de tudo nem é isso. O mais louco de tudo é que eu também acho que gosto dele. Quase consigo me animar com essa história, mas me animar ou gostar de alguém me lembra você. E fico triste novamente.
Eu achei que quando passasse o tempo, eu achei que quando eu finalmente te visse tão livre, tão forte e tão indiferente, eu achei que quando eu sentisse o fim, eu achei que passaria. Não passa nunca, mas quase passa  todos os dias.
Chorar deixou de ser uma necessidade e virou apenas uma iminência. Sofrer deixou de ser algo maior do que eu e passou a ser um pontinho ali, no mesmo lugar, incomodando a cada segundo, me lembrando o tempo todo que aquele pontinho é um resto, um quase não pontinho. Você, que já foi tudo e mais um pouco, é agora um quase. Um quase que não me deixa ser inteira em nada, plena em nada, tranqüila em nada, feliz em nada.
Todos os dias eu quase te ligo, eu quase consigo ser leve e te dizer: “Ei, não quer conhecer minha casa nova?” Eu quase consigo te tratar como nada. Mas aí quase desisto de tudo, quase ignoro tudo, quase consigo, sem nenhuma ansiedade, terminar o dia tendo a certeza de que é só mais um dia com um restinho de quase e que um restinho de quase, uma hora, se Deus quiser, vira nada. Mas não vira nada nunca.
Eu quase consegui te amar exatamente como você era, quase. E é justamente por eu nunca ter sido inteira pra você que meu fim de amor também não consegue ser inteiro.
Eu quase não te amo mais, eu quase não te odeio, eu quase não odeio aquela foto com aquelas garotas, eu quase não morro com a sua presença, eu quase não escrevo esse texto.
O problema é que todo o resto de mim que sobra, tirando o que quase sou, não sei quem é.

29 de jan. de 2015

A vida que não segue





Essa é a vida que segue de forma hostil, engraçada e um tanto quanto patética. Essa é a vida que se transforma, deleta, e recomeça. Recomeçar é tão triste, e ninguém sabe o quanto me sinto perdida quando me vejo num recomeço. Me sinto perdida, aflita, e desorientada quando finalmente percebo que estou sozinha de novo. Preciso escrever para me salvar, e salvar todos ao meu redor. Preciso escrever para dizer o quanto a vida está correndo rápido demais, e o quão assustada e arredia eu estou me tornando.


Estou te escrevendo porque estou demasiadamente perdida. Perdida do que eu era, perdida de você, perdida do mundo em que eu vivi por um bom tempo. Estou te escrevendo demasiadamente porque ainda busco seu corpo em outros corpos, e seu olhar frio nos outros olhares de pessoas frias e passageiras. Estou te escrevendo demasiadamente porque vivi por um bom tempo chapada, procurando razões, soluções, encontros e desencontros. Me perdi de você, de mim, e tudo aquilo que um dia eu cheguei acreditar. Mas eu escolhi que aquele fosse o fim. 

Estava e estou tão cansada. Tudo que eu mais quero é fugir de tudo isso. O problema de fugir é que você vai junto comigo.  Passo pela rua que você morou e é como o seu fantasma ainda estivesse naquela esquininha conversando comigo. Passo pela rua de cabeça baixa porque tudo isso ainda me dói um bocado, mas nada disso impede para que eu siga me vida conforme todo mundo me suplica. Se desse, se pudesse, seria isso e fim. Mas não posso, e nem devo ficar aqui. Se desse, se pudesse, eu até falaria milhares de coisas tortas, mas você não pode ouvi-las.
 

Se eu pudesse, não seguiria em frente. Se eu pudesse realmente, ficaria aqui, dentro desse quarto, esperando que o mundo acabe lá fora. Mas não dá para ser assim. Eu, que sou estudante universitária, não posso me dar o luxo de sofrer o tempo inteiro, nem ao menos, posso me dar o luxo em me enfiar de vez em qualquer sentimentozinho banal que queira nascer no meio disso tudo.

A vida acontece meio aos tropeços e acertos que fui dando ao longo desse tempo todo. A vida acontece quando desapareço e esqueço. A vida acontece mesmo quando quero chorar ouvindo Ne me quitte pas. A vida acontece da mesma forma quando um cara me manda os solos de guitarra tocada por ele, com a uma música do Nirvana. A vida desacontece quando descubro que não consigo mais ser mais inteira.

Poderia citar uma lista de nomes e características dos caras que tentam ocupar os lugares que já foram ocupados. Poderia citar o quanto o mocinho da faculdade me encara, e o quanto ele me faz sentir tão viva. Poderia citar também o quanto fico triste sabendo que não passa de desejo carnal. Poderia citar também o quanto seu cabelo fica incrivelmente lindo quando arrepia, e o quanto fico arrepiada quando sinto o olhar dele em cima de mim. Quero realmente me intrometer nos assuntos dele, e na vida dele, puxa!

Poderia citar o francês. Ele fala francês, ele se comporta como um francês, mas é brasileiro. Poderia citar que ele diz “Bonne nuit petite” quando digo que irei dormir. Mas poderia também dizer que ele só leva suas namoradinha aos motéis mais caros da cidade. Poderia dizer o quanto me sinto vazia quando lembro dele, e poderia até mesmo dizer: Ei cara, baixa bola! Mas quero me sujar da podridão dele, quero realmente me enfiar na lama, sabe?

Poderia citar o maconheirinho da faculdade federal da cidade. Aquele mesmo que diz que quer criar laços comigo. Aquele mesmo que diz o quanto fumar maconha é divertido, e no fundo, acho isso tão banal e tão vazio. Aquele mesmo que era seu amigo, lembra?  Ou qualquer coisa do gênero. Aquele mesmo. É, aquele lá. E eu não quero nada, nadinha. Só sinto sono.

Poderia citar um outro cara da faculdade que insiste em dizer o quanto minha boca é bonita, ou o quanto meu corpo é bonito. A voz dele é forte, o sotaque dele é mais forte ainda, e consegue ser mais irritante do que eu o meu. Se lembra de como você ria do meu sotaque?  Poderia dizer que quero finalmente fazer sexo com ele, mas não é isso, eu não devo nem ao menos chegar perto dele. 

Poderia continuar citando, decorando e dando nome aos bois. Mas são coisas que aconteceram e que já passaram. Eles nunca vão conhecer a mulher louca que saia correndo da sua casa e que teimava nunca olhar para trás. Eles nunca vão conhecer a menina tão frágil com a maquiagem toda borrada, e que ria dessa cena. Eles nunca vão saber o quanto eu arrepiava com o seu toque em cima das minhas costelas. Eles não vão ver a minha calcinha de oncinha que eu achava engraçada. Eles não vão me ver descabelar, chorar, e dizer o quanto tudo isso é patético. Não vão conhecer a que levanta a cabeça e não olha nem ao menos no fundo dos teus olhos. Não vão conhecer meu lado patético de ser, apenas meu lado legalzinho e passageira.

Eles não vão ser um décimo do que você foi. E sabe, não há porque realmente escrever, é que realmente acordei saudade, mas eles não vão saber o quanto eu odeio sentir saudades, e você sabe disso. Você me conheceu toda desmontada, desfigurada e bagunçada. Me expus sem medo, e sem muito drama. Você sabe, eu não sei sentir saudades quieta. Não sei sofrer em paz, na minha. Não sei ser menos.
 
Escrevendo esse texto só posso afirmar que sinto saudade hoje. Mas sinto saudade porque hoje é quinta-feira, e quinta-feira um dia propício à ter saudade. Sinto saudade porque tá ensolarados, e dias assim me fazem ser tão triste apesar de que estou vestindo um pijama de bolinha tão patético que aposto que iria te fazer rir.  Escrevo apenas para dizer que a vida segue seu caminho, apesar de tudo. Apesar das festas, e das insônias. Apesar de tantas coisas, a vida não acontece no meio do drama, do sufoco, e da aflição. A vida acontece só quando fecho os olhos e posso simplesmente desligar de suas lembranças, e de tudo que aconteceu pós a sua passagem.



Não quero ser comida (literalmente) pelo mundo, quero mais é ser escarrada.

15 de jan. de 2015

Hoje eu chorei com o caminhão de gás - Tati Bernardi



A primeira coisa que eu vi quando abri os olhos foi a minha cachorrinha me espiando triste do corredor, eram quatro da manhã e eu já sabia que não iria dormir mais.
Meu sono é interrompido de duas em duas horas por um pânico horrível que paralisa meus órgãos e só deixa viva a bile que toma todo o meu corpo e me faz querer vomitar até virar do avesso.
Eu arregalo os olhos para o teto, fecho minhas mãos com uma força que quase faz com que minhas unhas cortem minhas palmas e deixo a onda da dor vir, ela me sacode inteira, me joga numa profundidade sem som e me afoga por completo.
Abro as janelas porque preciso de ar, mas nunca tem ar para meu pulmão afogado. Coloco o santinho que meu avô me deu no peito e peço a ele: você já morreu por amor, não deixe acontecer o mesmo comigo.
Amar dói tanto que você volta a lembrar que existe algo maior, você se lembra de Deus, você se lembra de vida após a morte. Amar dói tanto que você fica humilde e olha de verdade para o mundo, mas ao mesmo tempo fica gigante e sente a dor da humanidade inteira. Amar dói tanto que não dói mais, como toda dor que de tão insuportável produz anestesia própria.
Você apela pra todo e qualquer santo, pra cartomante, pra ex-namorado, pra tarólogo, astrólogo, psicólogo, numerólogo, amigo e apela até pra inimigo. Qualquer um, pelo amor de Deus, tire essa dor de mim.
Não adianta, não vou dormir mais. Mas vou fazer o que então? Minha cama me lembra você, minha cachorra me lembra você, beber água me lembra você, viver me lembra você.
Vou me levantar agora e ir para onde? Tomar banho? Tomar café? Não tenho nenhuma vontade de existência, seja de vaidade ou gula. Só quero ficar deitada, mas ficar deitada também dói. O mundo não tem posição confortável pra mim, aonde vou, essa merda de dor horrível vai junto.
Chorar não adianta, eu seco de tanto chorar e não passa. Ver TV, falar ao telefone, dançar, gritar, escrever, abraçar minha mãe, tomar suco de manga… nada adianta.
Eu sei, eu sei, o eterno clichê “isso passa”. Passa sim e, quando passar, algo muito mais triste vai acontecer: eu não vou mais te amar.
É triste saber que um dia vou ver você passar e não sentir cada milímetro do meu corpo arder e enjoar. É triste saber que um dia vou ouvir sua voz ou olhar seu rosto e o resto do mundo não vai desaparecer. O fim do amor é ainda mais triste do que o nosso fim.
Meu amor está cansado, surrado, ele quer me deixar para renascer depois, lindo e puro, em outro canto, mas eu não quero outro canto, eu quero insistir no nosso canto.
Eu me agarro à beiradinha do meu amor, eu imploro pra que ele fique, ainda que doa mais do que cabe em mim, eu imploro pra que pelo menos esse amor que eu sinto por você não me deixe, pelo menos ele, ainda que insuportável, não desista.
Minha cachorra pede um biscoitinho, aí eu choro porque eu lembro que você adorava dar biscoitinho para ela. Está sol, e eu choro porque você ficava feliz com o sol e você feliz era tão perfeito que eu tinha medo. Aí eu vou escovar meus dentes e choro porque você tirava sarro da minha escova elétrica, depois eu faço xixi e choro porque a gente tinha liberado o xixi de portas abertas. Eu abro o guarda-roupas e choro porque eu não quero ficar bonita, eu não quero dar a volta por cima, eu não quero ficar bem pra você ver que eu estou bem e quem sabe ter saudades. Choro porque acho ridículo os jogos da vida, qualquer coisa é ridícula perto desse amor que é tão simples e óbvio.
Quando finalmente eu consigo me arrumar em meio a esse rio de lágrimas, eu choro porque o caminhão do gás passou e aquela musiquinha idiota, mais algumas crianças berrando na quadra lá embaixo e mais dois passarinhos cantando na minha janela, me lembram que a rotina, a alegria e a pureza ainda existem, apesar de você não estar mais aqui.
Nada, nada aconteceu para o mundo. E eu me sinto minúscula e sozinha por não ter a cumplicidade da vida lá fora, por não ter um minuto de silêncio pela nossa morte, por ter que sentir tudo isso sozinha, entre escovas de dentes, xixis e roupas dobradas e cheirosas.
Odeio a ordem de tudo, odeio a funcionalidade de tudo, odeio que a TV ligue, que o telefone toque, que meu estômago peça comida, que japonesas riam fora de hora, que meu carro corra, que a bola quique duas vezes antes e, principalmente, que você, não muito longe daqui, sorria.
Dirijo até meu trabalho sem nada dentro de mim a não ser um monstro parasita que se alimenta do meu desespero, nenhum farelo de comida. Meu lado da frente está quase colando ao de trás, talvez na falta de você eu precise mesmo me juntar mais a mim mesma. Minha mesa está lá, meu lixo está lá, minha cadeira, a menina grande que fala igual a um homem, a gordinha solícita que não pára de me olhar até que eu olhe para ela, sorria e diga bom dia. Está tudo lá, mas você, mais uma vez, não está aqui.
Vou para o banheiro e choro, que novidade? Mas dessa vez porque me olho no espelho, e isso também me lembra você. Eu era sua, a sua menina, a sua criança, a sua mulher, a sua escritora predileta, a sua parceira de dar risada de programas estúpidos que passam de madrugada na TV, a sua namorada sensível que tinha medo de vomitar e de amar demais, assim como você. A sua melhor amiga pra sentar num banco de praça e falar mal de todo mundo, pra perder um trem na Itália e ainda por cima sentar num chiclete fresco ou pra cuidar do nosso porquinho de pelúcia. Eu era a mulher que encaixava a cabeça nas suas costas e sabia que tinha nascido a partir de você, eu era a mulher que esperava sofridamente você voltar mas nunca deixou de te amar mesmo quando você ia.
Todo mundo me fala que eu preciso ser minha, inclusive pra ser sua, mas eu não deixo de olhar para o espelho e ver uma metade de gente, uma metade de sonho, de sexo, de alegria e de futuro. Que se foda a auto-ajuda, que se fodam os livros com homens carecas, que se foda o terceiro olho (do cu?) e que se foda a psicologia: eu sou mesmo metade sem você e que se foda!
Se antes de você aparecer eu já te amava, eu já te esperava, eu já sabia que você existia, como eu posso não te amar agora que você tem forma, sorriso, coração e nome?  



Tati Bernardi 

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