19 de dez. de 2014

Caio F. Abreu: Sérgio Keuchgerian




“... isso que chamamos de amor, esse lugar confuso entre o sexo e a organização familiar...”

Sérgio, não sabia como começar — então comecei copiando essa frase aí de cima, é Caetano Veloso numa entrevista ao JB, vim lendo pelo caminho, não consegui me livrar dela. Agora estou aqui, escrevendo pra você no meu quarto antigo, que minha mãe conserva tal-e-qual, como se eu um dia fosse voltar para casa. E lá se vão — quantos mesmo? — sei lá, quinze, vinte anos, qualquer coisa assim.

Chove. Faz frio. E bom estar aqui. Tão bom, Me sinto protegido. Ficamos vendo velhas fotografias, bebendo vinho e rindo muito. Meu irmão Felipe vestiu um modelinho de couro negro e saiu “para dar uma prensa numa caixa de supermercado”. Márcia está tão bonita. E Rodrigo, meu sobrinho, que tem dois
anos e não parece quase me desconhecer. Deixei-os vendo um filme antigo dos Beatles, Lennon repetindo “d’ont let me down, d’ont let me down” — e agora percebo que meu inglês anda tão precário que não lembro se é d’ont ou don’t.

Cansado, cansado. Quase não dormi. E não consigo tirar você da cabeça. Estou te escrevendo porque não consigo tirar você da cabeça. Hesito em dizer qualquer coisa tipo me-perdoe ou qualquer coisa assim. Mas quero te contar umas coisas. Mesmo que a gente não se veja mais. Penso em você, penso em você com
força e carinho. Axé. (...)

Não era nada com você. Ou quase nada. Estou tão desintegrado. Atravessei o resto da noite encarando minha desintegração. Joguei sobre você tantos medos, tanta coisa travada, tanto medo de rejeição, tanta dor. Dificil explicar. Muitas coisas duras por dentro. Farpas. Uma pressa, uma urgência. E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça. Com requintes, com sofreguidão, com textos que me vêm prontos e faces que se sobrepõem às outras. Para que não me firam, minto. E tomo a providência cuidadosa de eu mesmo me ferir, sem prestar atenção se estou ferindo o outro também. Não queria fazer mal a você. Não queria que você chorasse. Não queria cobrar absolutamente nada. Por que o zen de repente escapa e se transforma em sem? Sem que se consiga controlar.  (...)

E você não me conhece, eu não conheço você. Te escrevo por absoluta necessidade. Não conseguiria dormir outra vez se não escrevesse.  (...)

Please, save me the waltz.

Fiz fantasias. No meu demente exercício para pisar no real, finjo que não fantasio. E fantasio, fantasio. Até o último momento esperei que você me chamasse pelo telefone. Que você fosse ao aeroporto. Casablanca, última cena. Todas as cartas de amor são ridículas. Esse lugar confuso de que fala Caetano. E eu estava só
começando a entrar num estado de amor por você. Mas não me permiti, não te permiti, não nos permiti. Pedro Paulo me dizendo no ouvido “nunca vi essa luz nos seus olhos”.
Eu não queria saber.

Tão artificial, tão estudado. Detesto ouvir minha voz no gravador ou ver minha imagem em vídeo. Sôo falso para mim mesmo. A calma, o equilíbrio, as palavras ditas lentamente, como se escolhesse. Raramente um gesto, um tom mais espontâneo. Tão bom ator que ninguém percebe minha péssima atuação.
Você compreende tudo isso? (...)

Dormi umas três horas e acordei ouvindo Quereres, de Caetano. Repeti, várias vezes, cada vez mais alto. Ah, bruta flor, bruta flor do querer. Discutia tanto com Ana Cristina Cesar, antes que ela acolhesse a morte (acertadamente? me pergunto até hoje, nunca sei responder): nossa necessidade fresca & neurótica de elaborar sofrimentos e rejeições e amarguras e pequenos melodramas cotidianos para depois sentar Atormentado & Solitário para escrever Belos Textos Literários.

O escritor é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de reflexos, espelhos, imagens, palavras. O não-real, o não-palpável. Você me dizia “que diferença entre você e um livro seu”. Eu não sou o que escrevo ou sim, mas de muitos jeitos. Alguns estranhos.

Não há nenhum subtexto nisto que te escrevo. Não acho bonito que a gente se disperse assim, só isso. Encontre, desencontre e nada mais, nunca mais, é urbano demais — e eu nasci praticamente no campo, até os 15 anos quase no campo, céu e campo. Não sei se a gente pode continuar amigo. Não sei se em algum momento cheguei a ver você completamente como Outra Pessoa, ou, o tempo todo, como Uma Possibilidade de Resolver Minha Carência. Estou tentando ser honesto e limpo. Uma Possibilidade que eu precisava devorar ou destruir. Porque até hoje não consegui conquistar essa disciplina, essa macrobiótica dos sentimentos, essa frugalidade das emoções. Fico tomado de paixão.
Há tempos não ficava.

E toda essa peste, meu amigo. O que tem me mantido vivo hoje é a ilusão ou a esperança dessa coisa, “esse lugar confuso”, o Amor um dia. E de repente te proíbem isso. Eu tenho me sentido muito mal vendo minha capacidade de amar sendo destroçada, proibida, impedida, aos 36 anos, tão pouco. Nem vivi nada ainda. E não sou, sequer promíscuo. Dum romantismo não pós, mas pré todas as coisas — um romantismo que exige sexualidade e amor juntos. Nunca consegui. Uns vislumbres, visões do esplendor. Me pergunto se até a morte — será? Será amor essa carência e essa procura de amor, nunca encontrar a coisa? (...)

Tudo isso, se eu te dissesse, talvez tivesse ajudado a doer menos em você. (...)

Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas. Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros. De não morrer, de não sufocar: de continuar sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre traz, e então não repetir nenhum
comportamento. Ser novo. (...)

Somos muito parecidos, de jeitos inteiramente diferentes: somos espantosamente parecidos. E eu acho que é por isso que te escrevo, para cuidar de ti, para cuidar de mim — para não querer, violentamente não querer de maneira alguma ficar na sua memória, seu coração, sua cabeça, como uma sombra escura. Perdoe a minha precariedade e as minhas tentativas inábeis, desajeitadas, de segurar a maçã no
escuro. Me queira bem.

Estou te querendo muito bem neste minuto. Tinha vontade que você estivesse aqui e eu pudesse te mostrar muitas coisas, grandes, pequenas, e sem nenhuma importância, algumas. Fique feliz, fique bem feliz, fique bem claro, queira ser feliz. Você é muito lindo e eu tento te enviar a minha melhor vibração de axé.
Mesmo que a gente se perca, não importa. Que tenha se transformado em passado antes de virar futuro.
Mas que seja bom o que vier, para você, para mim.

Com cuidado, com carinho grande, te abraço forte e te beijo
Caio F.
PS — Te escrevo, enfim, me ocorre agora, porque nem você nem eu somos
descartáveis. E amanhã tem ☼. 

13 de dez. de 2014

Divã




Oi, Doutor. Preciso me apresentar formalmente? Ok, ok. Meu nome é Anita.Tenho 21 anos, Sou virginiana, com ascendente em Áries, lua em leão. Aliás, minha Vênus está em leão. E não acredito em horóscopo. Apenas gosto de dar essas complementações porque simplesmente nunca sei o que dizer sobre o que sou. Quando a astrologia entrou na minha vida, Doutor? Nem eu lembro. Mas descobri que ficaria menstruada pela primeira vez quando li um horóscopo de uma revista. Nem acredito em revistas também. Às vezes, eu não acredito nem em mim, e é por isso que eu quero conversar com você, doutor. Se sou triste? Pois é, sou. Sou melancólica, e um bocado depressiva. Acho que é pelo fato de ser filha única, não sei. Quando começou? Não lembro. Sei que me sinto triste algumas horas por dias, e sempre nos finais de semana penso em morrer. 

Ah, Doutor, eu não sei porque eu quero morrer justo nos fins de semana. Talvez porque eu estou acostumada a entrar nessa tal roda gigante que todo mundo costuma dizer que é a vida. A vida é cheia desses altos e baixos. Cheia de trocadilhos ridículos, e de piadinhas de tios sem noção num fim de churrasco. Sempre estou indo embora. Embora? Sim, sempre estive pronta para dizer adeus e fim, fechem as cortinas. Mas nunca tive muita coragem. Tenho medo de morrer, vai que dói né? Doutor, eu sei que dói, e eu nunca fui num psiquiatra antes. Tenho medo de reencarnação. Pois é, dá para acreditar nisso? Nem eu acredito que tenho medo. 


Meu maior medo? De vacas. Morro de medo. E olhe que gosto de animais, gosto mesmo. Mas eu sei que elas são inofensivas. Mas acho que sempre gostei de dizer que tenho medo delas. Mas também morro de medo da cegueira que me ronda. Não cegueira literalmente falando, mas aquela cegueira sentimental que te faz ver as pessoas com outros olhos. Olhos felizes, ou até mesmo patéticos demais. Tenho medo de ser cega quando faço minhas escolhas. Tenho medo de ser cega quando me apaixono. E tenho medo de ser cega quando condeno os outros. Tenho medo de ter medo, e é engraçado dizer isso. Isso nunca me fez parecer insensata. Desculpa doutor, estou falando rápido demais, e tudo bem. Tudo bem mesmo. Mas aos poucos, meus medos são tão idiotas comparado ao das outras pessoas. Nunca entendi o medo de morrer. Nunca tive. Sempre tive a morte do meu lado desde criança. Então, convivo bem com ela. Nem tenho medo da solidão, eu sou melhor assim. Então, esses medos fortes, não me fazem ter medo de nada.


Por que você quer que eu fale sobre minha vida amorosa, doutor? Nem ao menos sei o que é isso. Sou meio doida, sabe? Meio punk mesmo. Porra louquíssima quando se trata de relacionamentos. Muitas vezes pensei em entrar nesses programas para mulheres que amam demais, mas tenho noção que é só drama. Se eu já amei, doutor? É lógico. Sou intensa demais para viver 21 anos da minha vida sem ao menos amar uma vezinha só. Mas amei verdadeiramente dois caras só. E os dois cagaram para que eu sentia. Na verdade, eles cagaram para minha existência. Não sei doutor, não sei se fiquei assim, meio triste por conta deles. Acho que não. Acho que gosto mesmo é de drama, e de fazer com que as pessoas se sintam culpadas pelo jeito. Eu tenho esse lado meio de querer culpar o mundo pelos meus problemas. É, doutor, eu sei que é errado.

Me apaixonei uma vez pelo meu melhor amigo. Foi a pior burrada da minha vida. Mas também me apaixonei por um menino da faculdade. E depois por um menino da minha sala. Me apaixonei também por um cara que nunca quis nada comigo, e ainda de brinde, viajou para longe. Mas eu sou apaixonada mesmo é pelos personagens que crio. Eu gosto de me sentir apaixonada, mas não sei lidar, então, entro em crise. Sempre entro em crise quando estou apaixonada e quando sou correspondida. Sempre entro em crise quando estou apaixonada e não sou correspondida. Sempre entro em crise quando se apaixonam por mim, e eu, infelizmente, não posso corresponder. Me sinto ofendida, doutor. E sempre dizem que tem a ver com o meu horóscopo, mas eu não acredito. Acho que tenho sérios problemas com confiança, e sempre também dizem que é porque nunca aprendi a confiar em homem. O motivo, doutor? Eu cresci sem pai. E torço para que nenhum namorado seja igual a ele.

Às vezes, acho semelhança nele com outros caras por aí. Uma vez andei de ônibus, e o motorista corria tanto, e era engraçado porque ele acelerava o ônibus, e lembrava bastante do meu pai, e como se não bastasse, ele cantava. Achei engraçado, doutor. Achei mesmo. Tive um professor na faculdade que era idêntico ao meu pai, e eu simplesmente tomei birra deles, doutor. A minha sorte que ele puxava meu saco, porque tudo que eu mais sentia era nojinho de ficar perto. E às vezes, acho que os caras que gostei tem uma puta semelhança com o meu pai, e desculpe o palavrão. A semelhança, doutor? Eles sempre cagaram para minha existência.

Tenho uma mania grande também de instigar a memória dos outros. Não conto minha vida inteira, doutor, porque acho tão sem graça. Mas também não quero me dopar de calmantes para viver minha vida tão em banho maria. Gosto de causar paranoia nas outras pessoas. Gosto mesmo. E admitir isso me faz menos insensata, doutor? É, eu sei, deveria ser mais franca na próxima vez. Prometo que serei mais franca na próxima vez. Mas tenho sérios problemas em ser franca. E isso é errado. Sou muito 8 ou 80. Ou minto muito, ou escapo todas as verdades universais num dia só. Por isso, nem ao menos sei quem eu sou. Às vezes, eu me vejo tão livre, e às vezes, eu me vejo tão presa nisso tudo.

Doutor, deitada nesse divã, tudo parece tão mais claro. Tudo parece tão menos infinito quanto me parece. Eu sempre acho que vou morrer, mas ao mesmo tempo, sempre acho que quero viver, morar nos Estados Unidos ou em Londres. Sempre acho que vivo escrevendo personagens na minha cabeça facilita tudo mais. Doutor, tem remédio para amar? Às vezes, eu sinto algo dentro do meu peito que nem ao menos sei definir. Uma vontade horrorosa de amar todo mundo, e ao mesmo tempo, uma vontade horrorosa de nunca mais viver. Eu tenho vontade de não mais existir, mas da mesma forma, tenho vontade de infinitas coisas. São tão infinitas que não sei ao menos sei decifrar. Doutor, eu sei que falo demais, e sempre implicaram comigo. Tudo que eu mais queria era ter alguém que não implicasse por eu ser assim, tão cheia de mim.

Doutor, eu já quero marcar outra consulta. Posso?
Ok, nos vemos semana que vem. Espero ter mais coisas. Porque é tão difícil ter alguma coisa vivendo nesse meu mundinho tão cheio de coisas sem nexos. E é tão difícil existir.
Prometo não fazer nadinha, prometo.
Até depois, doutor.


8 de dez. de 2014

All you had to do was stay



Eu resolvi que ali seria o fim. Claro que eu sabia que iria passar noites chorando e escrevendo textos sem finais, claro que eu sabia que iria querer morrer, e iria procurar avisos celestiais. Mas eu escolhi que seria o último adeus, e a última vez que iríamos falar sobre nós. Escolhi que ali seria o nosso final. Eu não sentia mais viva perto de você, e aquele silêncio me fazia sentir a pessoa mais sozinha do mundo, mas eu estava ao seu lado. Eu me sentia sozinha com você do meu lado, e isso me fazia ficar triste. Isso realmente me deixava tão triste. Escolhi que seria a última vez que iria embora de sua casa, e sim, aquela foi a última vez.

Sobre os avisos celestiais, eles apareceram sim. Só que eu, tão cega por tudo aquilo, e tão ingênua, resolvi não vê-los. Resolvi que tudo aquilo era uma babaquice, e não havia aviso nenhum. Mas o destino estampava mais uma vez na minha cara que era hora de crescer e de resolver. Era hora de dizer adeus. Era realmente a hora de dizer que minha gastrite não aguentava mais, e eu achava que tudo aquilo bem maior que a minha pobre existência. E de fato, tudo aquilo foi bem maior que a minha minúscula existência.

Você estava cansado de mim, e eu sei disso. Estava cansado de saber que a minha existência era menor demais, e o que eu sentia era maior que tudo aquilo. Estava cansado e irritado por saber que meu endeusamento por você não passava de drama, e é verdade, tudo isso é drama. Tudo isso é vontade de escrever mesmo sabendo que isso vai sangrar por mais tempo. Mas sabe, escrever é exatamente isso. Escrever é sangrar, é remexer na ferida, e é esperar que o tempo cure, mesmo sabendo que esse clichê é uma puta encheção de saco.

Lembro que me sentia sozinha ao seu lado. Lembro aquele vazio imenso dentro do meu estômago todas às vezes que me mandava embora do seu mundo, me mandava ser mulher, me mandava até mesmo superar e esquecer. E eu, tão ingênua mais uma vez, me agarrava naquela lembrança mais escrota só para não te deixar morrer dentro de toda a história. Tudo que eu mais queria era morrer. Mas ao mesmo tempo, tudo que eu mais queria era viver.

Do mesmo jeito que você cansou de mim, eu me cansei de você. Cansei de não ser ouvida, nem sentida. Cansei de terminar algo que nem havia começado. Cansei de colocar reticências esperando simplesmente um próximo capítulo de sua artimanha. Mas aos poucos, aquele abismo se desfez. E eu pude colocar meus pés de novo ao chão. Minha existência era tudo menor do que poderia ter aguentado. Eu era apenas frágil demais para ter que lidar. Cansei de ser deletada, evitada, desviada. Cansei de ser simplesmente uma figura qualquer em seu mundo.

Eu não precisava de muito. Não precisava de orquestra na porta da minha casa. Não precisava de pichação de muro. Não precisava nem ao menos de escândalo. Só precisava que você me pedisse para ficar. Você deveria ter feito isso. Do mesmo jeito, que não deveria ter me feito escapar, fugir, ou surtar as escondidas. Não deveria ter me entregue tão fácil aos outros caras como se eu fosse uma mercadoria. Mas do mesmo jeito, eu, ingênua, não deveria ter entrado nessa história. Do mesmo jeito, eu não deveria ter ficado.

Pude voltar ao início.
Conheci outros perfumes, outros toques, outros olhares.
Conheci o mundo de uma maneira que não havia visto antes.
Por mais que a gente se canse, talvez, seja pra lá que a alma quer voltar.




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